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Lei além-muros

Por Cidades e Serviços
Última atualização: 13/10/2020

LEONARDO DA LUZ - FOTO PREFERIDA
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Aline Durães

 

No último dia 13 de maio, a Casa Noturna Mistureba, localizada em Barra Mansa, município do interior do estado do Rio, foi interditada após ação judicial movida por moradores do entorno. A alegação foi a de que a boate em questão perturbava o sossego alheio.

Dois anos antes, em 2017, o Tribunal de Justiça de São Paulo obrigou o proprietário de uma unidade a abandonar sua residência depois de ele, reiteradamente, ameaçar e intimidar funcionários e vizinhos em áreas comuns do condomínio.

As duas decisões judiciais tiveram como base legal a mesma norma: o direito de vizinhança. Previsto no Código Civil, essa vertente do direito se configura como um conjunto de regras que buscam ajuizar os conflitos de interesses causados entre proprietários de imóveis próximos. Vale para dentro e fora do condomínio e serve de alento aos síndicos nas situações em que ele não tem ingerência ou poder de aplicar multas. “O direito de vizinhança não se restringe aos imóveis que dividem muros, paredes ou cercas comuns. Ele se aplica a toda e qualquer propriedade que possa sofrer interferências, repercussões, a partir de atos realizados em outro imóvel. Não importa, portanto, a maior ou menor proximidade. Se o barulho de um imóvel chega a outro imóvel, cabe o direito de vizinhança. Se o risco de ruína ou de explosão em um imóvel gera riscos a outro, também cabe”, explica Leonardo Ribeiro da Luz Fernandes, sócio do Escritório Ribeiro da Luz Advogados e professor de Direito Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

No âmbito condominial, o direito de vizinhança pode ajudar a resolver conflitos mais complexos, cuja resolução não esteja contemplada no regimento interno da unidade. “Ele é plena e necessariamente aplicável ao condomínio quando este não possuir regras ou as possuir de forma insuficiente, para regular determinadas situações, como conflitos entre proprietários ou locatários, por exemplo”, completa a advogada Amanda Cunha.

Regulamentado nos artigos 1.277 a 1.313 do Novo Código Civil e respaldado também por dispositivos da Constituição Federal, o direito de vizinhança pode se sobrepor, inclusive, ao direito de propriedade, conforme mostrou o entendimento do TJ-SP na decisão citada no início desta reportagem. “O proprietário (ou ocupante por ele autorizado) deve evitar comportamentos nocivos à coletividade. Não tem a liberdade de prejudicar o sossego, segurança e saúde dos demais proprietários. Se for comprovado que sua conduta gera grave incompatibilidade de convivência, o direito de vizinhança se sobrepõe sim ao de propriedade”, pontua André Luiz Junqueira, da Coelho, Junqueira & Roque Advogados.

 

Por dentro do Direito

O artigo 1.277 do Código Civil de 2002 é claro: “o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”. Esta norma abre brecha para que o direito de vizinhança se ocupe de uma série de imbróglios, entre eles infiltrações, ruídos excessivos, obras realizadas fora do horário permitido, placas e banners excessivamente grandes que comprometem a visibilidade, muros e divisões irregulares.

O Código Civil ajuíza, por exemplo, sobre raízes e troncos de árvores que dividem limites entre propriedades distintas. Nos artigos 1.282 e 1.283, o dispositivo afirma que, se um tronco estiver na linha divisória, as duas unidades são donas da árvore e uma não pode agir sobre a planta sem o consentimento da outra. Diz ainda que, se um terreno é invadido por folhagem vizinha, seu dono tem direito de cortá-las até a linha divisória.

A legislação fala também sobre a construção de muros e cercas, tema de disputa recorrente entre vizinhos. De acordo com o artigo 1.297 do Código Civil, todo proprietário tem o direito de cercar seu prédio, demarcando limites com a propriedade contígua. O artigo ressalta ainda que os muros e cercas pertencem a ambos os proprietários, cabendo a eles arcar igualmente com as despesas de sua construção e conservação.

Merecem destaque ainda dois outros artigos do direito de vizinhança. O primeiro deles é o 1.301, que aborda a questão do devassamento da propriedade vizinha. O texto admite a abertura de janelas, terraço ou varanda para resguardar a intimidade de seus moradores, desde que seja respeita a distância de metro e meio do terreno vizinho.

Já o 1.311 chama a atenção por tratar de obras ou reformas que coloquem em risco a segurança de prédios e casas anexos. O texto proíbe expressamente a realização de obras capazes de provocar desmoronamento ou deslocação de terra, orientando o responsável pelo serviço a efetuar o que chama de obras acautelatórias. A lei força o ressarcimento de danos morais e materiais aos vizinhos que tiveram qualquer prejuízo por conta desse tipo de incursão.

 

Antes de chegar à Justiça

Em muitos casos, os conflitos com vizinhos têm impactos tão nocivos na coletividade que leva o síndico a crer na Justiça como a única via possível para uma solução definitiva do problema. Mas, para os especialistas, há outros caminhos — mais baratos e rápidos e menos traumatizantes — a seguir.

O primeiro deles é a mediação. Antes de cogitar uma ação judicial, é importante que o síndico tente conversar com a outra parte, sempre no sentido de obter um acordo vantajoso para ambos os lados. “Na maioria das ocasiões, o diálogo entre as partes traz solução, pois faz com que o transgressor veja sua conduta e a adeque. Chamar o responsável da propriedade que está causando os problemas é uma medida eficaz, sendo recomendado que o teor da reunião bem como o acordo alcançado sejam redigidos em ata assinada por todos”, sugere a advogada Amanda Cunha.

A mediação foi o caminho encontrado por Josenira Azevedo no Acapulco II. Quando foi síndica do condomínio com 20 unidades em Niterói, a atual integrante do Conselho Fiscal do edifício teve de lidar com uma condômina que trazia visitas indesejadas para a unidade. “Era um morador da rua do qual sabíamos o histórico de envolvimento com drogas. As pessoas começaram a ficar incomodadas e a reclamar bastante. Principalmente seus vizinhos de andar”.

Com a ajuda de uma profissional, Josenira chamou a moradora para conversar, expôs a situação e buscou um acordo. “Nos encontramos em uma área comum do prédio e fizemos uma ata da conversa, que foi conduzida pela advogada. Apesar de não ter gostado muito, a condômina se comprometeu a mudar sua postura. Nunca mais a tal visita apareceu. Tempos depois, ela se mudou do condomínio”, conta a gestora.

Uma segunda estratégia da qual não se pode abrir mão é a notificação. “O envio de uma notificação extrajudicial transmite a mensagem de que quem reclama está realmente incomodado e prestes a acionar o Poder Judiciário, mas ainda acredita na resolução amigável, abrindo caminho para uma negociação e conciliação”, afirmam Gustavo Schiefler e Eduardo Schiefler, advogados no escritório Schiefler Advocacia.

Seja qual for o passo a ser dado, é imperioso que o condomínio esteja, desde o princípio, assessorado por um consultor jurídico. “É um equívoco achar que o advogado somente deve ser contatado pelo síndico na hora da ação judicial. Ele poderá analisar o caso desde o início, antes de qualquer medida, sendo a judicial apenas uma delas e a mais drástica. Um advogado especialista na matéria poderá orientar o condomínio de forma a ter mais efetividade da solução do problema e evitar prejuízos”, afirma André Luiz Junqueira. “Em um condomínio em São Paulo (SP), uma condômina possuía dois cachorros da raça Buldogue francês. Ela foi advertida e multada várias vezes por transitar com eles pelas áreas do condomínio. A moradora tentou resolver as controvérsias amigavelmente, conversando com o síndico, que não lhe tratou de forma muito cordial. Infelizmente, por conta disso, ela propôs uma ação judicial para anular as multas recebidas, sendo que, ao final, o condomínio foi condenado a pagar os honorários sucumbenciais dos seus advogados, inclusive. Esse caso é um típico caso de direito de vizinhança em que a assessoria permanente de um advogado poderia ter evitado o problema”, completam os especialistas Gustavo e Eduardo Schiefler.

 

Jurisprudência

Para os casos que efetivamente não encontraram solução amigável, a Justiça é a única saída. As mais recentes decisões judiciais têm se mostrado favoráveis aos reclamantes, especialmente se eles anexam a seus processos evidências que comprovem os danos ao sossego, à saúde e à segurança provocado pela má ação de um vizinho.

Nesse sentido, os especialistas afirmam ser de suma importância reunir o máximo possível de provas a serem usadas em juízo, como laudos técnicos, notificações, fotografias, boletim de ocorrência, abaixo-assinado e comprovação de denúncia perante a Polícia Militar ou a Prefeitura. “É sempre recomendável documentar todas as comunicações importantes entre as partes. Assuntos tratados de boca e não documentados costumam gerar grandes problemas. Além disso, hoje é muito mais fácil fazer uso de tecnologias de foto e vídeo. Todo celular tem câmeras bem avançadas. Logo, é importante filmar e fotografar tudo que envolver o caso”, orienta o professor Leonardo Ribeiro da Luz Fernandes.

 
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