Valter Vivas (*)
Em 7 de julho de 2015 entrou em vigor no Brasil a lei 13.146/2015, com eficácia estipulada para 180 dias após sua publicação, isto é, em 3 de janeiro de 2016. A partir de sua publicação, uma série de perguntas surgiu tanto no meio jurídico quanto no âmbito da administração condominial, diante de preocupações e dúvidas sobre as adaptações estruturais em construções, obrigações dos administradores e cumprimento do objetivo da lei.
Mas antes de partir para as respostas sobre estas questões, é preciso primeiro entender o que representa a lei 13.146/2015 e criar uma visão geral e finalística que está na sua concepção. Cumprir friamente as obrigações fixadas na lei sem compreender seu significado e perspectiva de cidadania significaria deixar de lado uma grande oportunidade de aprendizado e de rompimento com paradigmas insustentáveis. Para tanto, entendemos que o primeiro exercício a ser feito é olhar a origem da norma e sua razão de existir.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988 e também chamada Constituição Cidadã, preocupou-se em afastar (e consequentemente tornar inconstitucionais) atos discriminatórios em relação a pessoas com deficiência, como por exemplo, diferenciar salários; ao mesmo tempo, criou dispositivos de inclusão e proteção, como percentual de reserva em cargos e empregos públicos, critérios diferenciados para aposentadoria e sistema de assistência social.
O Art. 244 da Constituição Cidadã prevê claramente a edição de lei para adaptação de logradouros, de edifícios de uso público e de veículos de transporte coletivo. A origem constitucional desta proteção, a nosso sentir, é garantir a aplicação do princípio fundamental da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III da Constituição da República). Pessoas que portam alguma deficiência física enfrentam, mesmo na realização de algumas tarefas “simples”, uma verdadeira batalha quando a estrutura física não foi pensada com sua inclusão. Isto é social e juridicamente justo? Uma pessoa com deficiência mental ou sensorial não é merecedora, pela sua condição, de viver (plenamente) em um ambiente social e estrutural que lhe proporcione dignidade e acesso? A visão geral e finalística de todas as normas que têm origem não só na Constituição, mas também nos tratados internacionais e na experiência de países desenvolvidos, residem na resposta positiva a estas perguntas. Modificar a realidade, de forma ampla e concreta, é a finalidade da norma e esta tem de ser a visão sobre sua aplicação.
Visitada a origem e proposta a finalidade da lei, pensamos que devemos afastar um comum comparativo com a lei 10.098/2000, regulamentada no Decreto 5.296/2004. Esta lei, com todos os méritos (e críticas) que carrega, tem como foco a Acessibilidade, criando conceitos e normas gerais para que estruturas físicas, meios de transporte e de comunicação sejam pensados, criados, adaptados ou mesmo removidos, visando a acessibilidade de pessoas com deficiência. A lei 13.146/2015 tem outro objetivo, outro foco. Seu “núcleo essencial” ou ponto de perspectiva é a pessoa com deficiência, não só motora, mas sensorial, intelectual e mental, e as diversas interações a que ela, como qualquer pessoa, está sujeita, não só com estruturas físicas, meios de transporte e comunicações, mas também na realização de atos da vida civil, prestação e recebimento de serviços, sua própria condição de saúde, de trabalho, de educação, lazer etc. Não se trata de uma substituição ou revogação de uma lei por outra. Entendemos que são institutos complementares e que devem ser interpretados conjuntamente.
De início, é importante entender o que a lei definiu como pessoa com deficiência. De acordo com a lei 13.146/2015, “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
Diversos aspectos da lei em questão utilizam a expressão “espaço privado de uso coletivo”. Considerando a finalidade da norma e a ausência de restrição conceitual, entendemos que tal expressão, quando existente na lei, deve ser entendida pelos condomínios como “áreas de uso comum”. Neste sentido, as normas que trazem referência a “espaço privado de uso coletivo” são aplicáveis aos condomínios.
Também de acordo com a lei (art. 3º), os condomínios devem entender a Acessibilidade como a possibilidade e a condição de alcance para uma pessoa com deficiência utilizar, com segurança e autonomia, acessos, mobiliários e áreas comuns da edificação. O art. 53 traz um conceito complementar de Acessibilidade, como sendo o “direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social.”
Dentre os diversos aspectos do Estatuto da Pessoa com Deficiência estão dois temas que se relacionam aos condomínios e edificações: Direito à Moradia (art. 31 a 33) e Acessibilidade (art. 53 a 62).
A proteção do direito à moradia, tratado no Estatuto, tem especial destaque para os condomínios edilícios oriundos de programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos. Nestes casos, a construção deverá garantir Acessibilidade nas áreas comuns e nas unidades autônomas situadas no térreo. Os demais pisos deverão ser dotados de Acessibilidade ou adaptação razoável. Além deste aspecto, o projeto de construção deverá permitir a construção de elevadores.
Em relação à Acessibilidade, a aprovação de projetos arquitetônicos que tenham destinação coletiva dependerá do cumprimento dos dispositivos previstos no Estatuto. Mas a lei não trata somente dos projetos para futura construção.
O art. 56 amplia consideravelmente a aplicação da Acessibilidade e diz que “a construção, a reforma, a ampliação ou a mudança de uso de edificações (…) privadas de uso coletivo deverão ser executadas de modo a serem acessíveis.” Isto quer dizer que o condomínio, ao ser erguido ou ao realizar uma construção, reforma, ampliação ou mudança no uso de área comum, deverá ocupar-se com a inserção do conceito de Acessibilidade neste ato. É claro que a reforma de uma fachada ou a troca de tubulações não implica em acessibilidade. Todavia, uma reforma de portaria, uma ampliação da garagem ou a construção de uma academia no lugar do antigo jardim, por exemplo, devem conter no projeto o conceito de acessibilidade.
Na prática, além da eventual fiscalização do Poder Público, estimamos que o grande volume de controle será efetivado na aprovação de projetos, nas anotações de responsabilidade técnica (ART) e nos licenciamentos de obra. De acordo com o Estatuto, os órgãos de licenciamento de obras e as entidades que fiscalizam profissionais de engenharia (CREA) e de arquitetura (CAU) têm o dever de avaliar a aplicação da acessibilidade nos mencionados atos. A lei não traz a previsão de penalidades administrativas pelo descumprimento, mas ordena que a legislação sobre obras, posturas, prevenção de incêndio e pânico, e ocupação do solo sejam interpretados de acordo com o conceito de Acessibilidade. Neste sentido, o descumprimento de normas sobre acessibilidade representará, em última análise, descumprimento à toda esta legislação.
O art. 57 é bastante rigoroso ao ordenar que “as edificações públicas e privadas de uso coletivo já existentes devem garantir acessibilidade à pessoa com deficiência em todas as suas dependências e serviços, tendo como referência as normas de acessibilidade vigentes.”
Apesar de a lei não mencionar nos artigos 56 e 57 o conceito de Adaptação Razoável, entendemos que tal conceito deve ser aplicado mesmo na omissão dos artigos, de maneira que se atinja a finalidade almejada no Estatuto, ponderando-se com o esforço necessário, inclusive financeiro do condomínio, e a própria viabilidade técnica.
O conceito de Adaptação Razoável consta do art. 3º, VI da lei e diz que são “adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais;”
Não há dúvidas que determinados casos de reforma ou adaptação, por mais que se deseje aplicar na plenitude o conceito de Acessibilidade, estarão limitados pela proporcionalidade do ônus necessário à transformação e/ou à limitação técnica. Para exemplificar, basta se imaginar a instalação de elevador para acessibilidade de pessoa com deficiência física que dificulte a locomoção, em edifício de pequeno porte (até três andares). Além da viabilidade técnica sobre um projeto original que não previa elevador, o custo de instalação implicaria em ônus desproporcional aos condôminos. A ausência de alternativa expressa nos artigos 56 e 57 para aplicação do conceito de Adaptação Razoável é merecedora de crítica. Constasse dos artigos mencionados a previsão, evitar-se-iam litígios para debater a possibilidade (ou não) de aplicação deste princípio nos casos omissos da lei.
Contrario sensu, há diversas adaptações que são viáveis financeira e tecnicamente. A instalação de barras de apoio, remoção de obstáculos, rampas, fitas aderentes, sinalizações visuais, dispositivos comunicadores em áudio e braile, sensores de presença etc. são alguns exemplos de baixo custo e que já facilitam bastante a vida de quem porta alguma deficiência.
De toda sorte, o Estatuto da Pessoa com Deficiência é um importante marco. Ele traz um amplo olhar sobre as múltiplas dificuldades vivenciadas por milhares de pessoas diariamente e serve como base para repensarmos todas as nossas atitudes e projetos. Os condomínios, refletindo pequenas sociedades ou até minibairros, pode ser o exemplo de comportamento e importante agente de mudança de toda a sociedade.
(*)Valter Vivas é advogado e gerente jurídico
no escritório Schneider Advogados Associados.