Quando o silêncio é lei
Por Cidades e Serviços
Última atualização: 10/09/2012
Edição 204 Set/Out 2012
A legislação é clara: são estritamente proibidos ruídos que prejudiquem a saúde, a segurança ou o sossego públicos. Promulgada em1977, aLei 126/77, mais conhecida como Lei do Silêncio, prevê punição a quem promove repetidamente barulhos “em edifícios de apartamentos, vila e conjuntos residenciais ou comerciais”.
Embora existam há 35 anos, as regras nem sempre são respeitadas. Bruno Amar, advogado do escritório Schneider Associados, conta que são comuns os casos de síndicos que procuram assessoria jurídica para resolver problemas relacionados ao desrespeito à Lei do Silêncio. “Os síndicos nos procuram por força de reclamações de outros condôminos, normalmente anotadas nos livros de reclamação do condomínio, referentes a ruídos provenientes de outras unidades exclusivas do próprio prédio. Mas também somos acionados por gestores que relatam problemas de barulho externo, como instalação de sistemas de exaustão em imóveis vizinhos e salões de festas de condomínios próximos”, conta.
A síndica Maria Elizabeth do Magalhães, do edifício Paul Harris, no Leblon, já passou por poucas e boas por conta do barulho excessivo. Localizado em uma das avenidas mais valorizadas da Zona Sul carioca, o condomínio de 14 unidades tem como vizinho um bar igualmente badalado. Amontoados nas calçadas e na rua, jovens de todas as idades se reúnem ao redor do bar até altas horas da madrugada. Conversam em voz alta, ouvem música e, não raro, discutem. Nos finais de semana, a agitação é ainda mais intensa. A paz dos condôminos do Paul Harris fica então comprometida. “Aqui, nós só temos tranquilidade às segundas e terças-feiras. Já na quarta-feira, começa a movimentação. Às vezes, tem tanta gente em frente ao bar que mal consigo entrar com meu carro na garagem”, desabafa Maria Elizabeth.
Diversão para uns, prejuízo para outros
A badalação do bar impacta de forma negativa na rotina do condomínio do Leblon. Alguns condôminos tiveram que trocar as janelas tradicionais por modelos antirruídos para abafar os sons provenientes da rua. Outros simplesmente desistiram de tentar conviver com o barulho constante e se mudaram do edifício. “Moramos a uma quadra da praia, em um bairro maravilhoso, temos uma das vistas mais bonitas da cidade, mas não podemos abrir as janelas sem nos sentirmos incomodados. Somos obrigados a fechar tudo e a ligar o ar condicionado para ver TV, conversar, dormir, para ter um pouco mais de paz, enfim”, narra Maria Elizabeth.
A síndica pontua que já houve casos de potenciais inquilinos e compradores desistirem de fechar negócio com o condomínio por conta da intensa movimentação do bar vizinho. “No fim das contas, é o nosso patrimônio que fica desvalorizado”. Maria Elizabeth, bem como os demais condôminos do Paul Harris, já lançou mão de várias tentativas legais para resolver o imbróglio: conversou com o gerente do bar em questão, reclamou junto à Prefeitura, acionou a Polícia. Um dos moradores do edifício chegou a mover um processo contra os donos do estabelecimento comercial, mas perdeu a ação na Justiça. Para a síndica, o problema poderia ser resolvido se o bar instalasse algum tipo de proteção acústica e se os órgãos responsáveis pela liberação de alvarás de licença para estabelecimentos comerciais fossem mais criteriosos. “Acredito que não deveria ser autorizado o funcionamento de bares desse tipo em ruas residenciais como a nossa”, aponta.
Os condôminos do Paul Harris não devem, entretanto, desanimar. A Lei do Silêncio vem chamando atenção e, cada vez mais, angaria defensores, tanto que a Secretaria Municipal de Meio Ambiente destacou o telefone 2273-5516 para receber denúncias sobre locais barulhentos. O atendimento acontece, em horário comercial, de segunda a sexta-feira. É possível também agendar a fiscalização para o sábado ou o domingo.
Bruno Amar lembra que a valorização do silêncio e a promoção do bem-estar são prioritárias em todos os momentos do dia e não apenas na parte da noite como muitos pensam. Ao serem incomodados com barulho excessivo, síndico e condôminos devem fazer valer seu direito, seja dia ou noite. “Essa é uma questão que confunde as pessoas. A Lei do Silêncio vale também de dia. Há, no corpo da Lei, algumas situações em que o legislador optou por definir um período do dia, um horário, em que elas não podem acontecer. Mas poluição sonora, na forma da Lei, não pode ser feita em hora alguma”, esclarece. E a regra vale inclusive para obras externas e condomínios vizinhos. “O síndico deve notificar o prédio vizinho de onde seja proveniente o barulho excessivo”, aconselha Bruno Amar.
Quando o barulho vem de dentro
Muitas vezes, os incômodos causados pelos ruídos em demasia vêm de dentro e não de fora do condomínio. Moradores que recebem visitantes até altas horas, festas em plays que desafiam o estabelecido no regulamento, mudanças realizadas fora do horário permitido. Esses são alguns episódios que podem comprometer o silêncio do condomínio e, mais do que isso, provocar desavenças entre os condôminos.
Eventos desse tipo podem ser difíceis de contornar. Para evitá-los, o consultor jurídico Bruno Amar sugere que o gestor se paute sempre pelo regimento interno e pela Convenção do condomínio. Esses documentos serão os principais aliados na hora de o síndico tomar providências. “Primeiramente, é fundamental que o condomínio regulamente essas atividades no âmbito interno. Estes regulamentos, para os condôminos e ocupantes, têm forma coercitiva e podem prever multas por quem os infringir”.
Na falta de regulamentação, cada caso deve ser analisado separadamente. Antes de medidas mais drásticas, o síndico pode lançar mão de advertências, notificando os condôminos barulhentos e alertando-os sobre o incômodo que causam aos vizinhos. Se o barulho persistir, talvez seja a hora de convocar uma Assembleia para debater o assunto. Neste caso, se dois terços da totalidade dos condôminos concordarem, pode-se aplicar multas aos arruaceiros mais extremos.
Dependendo da gravidade e da freqüência do barulho, a lei abre brecha até mesmo para a expulsão do condômino responsável. Os artigos 1336 e 1337 do Código Civil admitem a aplicação dessa punição nas ocasiões em que, mesmo depois de ter sofrido todas as sanções cabíveis, o morador não tenha cessado o comportamento antissocial. “Há decisões no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acolhendo a tese da exclusão do condômino antissocial, e essa tese vem ganhando força também no Rio de Janeiro”, salienta Bruno.
Acima de tudo, o bem-estar
A convivência em coletividade nem sempre é fácil. Apesar de conter regras próprias, os condomínios reúnem moradores de diferentes costumes, com prioridades e rotinas diversas. Toda uma sorte de pessoas espera experimentar em sua residência momentos que lhe tragam bem-estar. A diversidade, no entanto, impede que a noção de bem-estar seja compartilhada da mesma forma por condôminos festeiros e por aqueles mais recatados. No meio dessa turbulência de expectativas, está o administrador. Cabe a ele a tarefa de lidar com as reclamações daqueles que se sentem incomodados e com as justificativas daqueles que, vez ou outra, erram a mão no barulho.
Bom senso são as palavras de ordem para lidar com as situações que envolvem conflitos de interesses entre os condôminos. “O síndico não deve ser omisso quando os condôminos pontuarem questões para ele. Para avaliar se o barulho é aceitável ou não e se a Lei do Silêncio está sendo ferida ou não, ele precisa conhecer a situação. Uma reclamação reiterada de um morador contra outro, levada ao conhecimento da administração, deve ser analisada e, se o gestor entender que o protesto procede, deve notificar a unidade”, aconselha o advogado.
Bruno finaliza, lembrando que “a sociedade como a conhecemos e, de certa forma, como a moldamos e escolhemos, nos impôs um estilo de vida em que é praticamente impossível viver em uma grande cidade no geral, e em um condomínio com várias unidades imobiliárias em particular, sem a presença de ruídos. Mas acredito que deve haver bom senso entre aqueles que dividem o mesmo espaço físico para que haja uma convivência pacífica e capaz de não trazer prejuízo a nenhuma das partes. Há o direito e o dever, e ambos devem coexistir. Mais do que a Lei do Silêncio, deve haver a vontade dos co-proprietários em observar a boa convivência. E a administração deve zelar por esta boa convivência, nem que para isso, em algumas vezes, tenha que exercer seu papel de fiscalização e seu poder de impor penalidades para ver os direitos respeitados”.
Texto: Aline Durães